13.11.05

DOMINGO, 13 DE NOVEMBRO DE 2005

ANA VAZ PINTO EM DISCURSO DIRECTO
Queridos primos,

Aqui vai o tão prometido “mail decente” para pôr no Blog.
É muito bom podermos ter esta maneira de sabermos o que se passa nas vidas e nas almas uns dos outros, do Uíje a Hong Kong.

Esta vossa prima, sobrinha, mana, etc, está óptima! Cheia de trabalho e cheia de vontade de trabalhar muito mais. Cada dia surgem novas possibilidades, ideias para novos projectos e pessoas diferentes a querer trabalhar connosco. O mais difícil é perceber, além do que é preciso, aquilo que podemos oferecer.

Estou a dar aulas de inglês e português no seminário, aulas de relações humanas na escola de catequistas, catequese e aulas de inglês no lar de S. José, como formadora num projecto de prevenção da SIDA aqui no nosso bairro do Dunga e canto no grupo coral do bairro. Cantamos sobretudo em kikongo, por isso já vou aprendendo umas coisas: Nkembo, Nkembo, Nkembo kwa nzambi, muna zulo, E va n’toto , ngemba, ngemba, kwa antu katoma zola. (Glória, glória, glória, a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados).
Vamos gravar umas missas, para vocês verem e ouvirem. As missas são sempre uma animação e nunca duram menos de hora e meia.
Antes do Evangelho fazem a dança da entronização da palavra e no ofertório dançam até ao altar, levando na cabeça desde fruta a grades de cerveja. No outro dia, na missa da sagração de um bispo até ia um cabrito vivo seguro por 4 homens. É sempre uma festa!

Eu sei que escrevendo assim parece que o meu trabalho é apenas dar aulas.
Pois, é só isso, mas é tanto mais!
Na escola de catequistas dou aulas a homens dos 36 aos 67 anos. São líderes comunitários nas suas aldeias e instrumentos de mudança. Até consigo ver a luz a entrar naquelas cabeças. Começaram por ser muito tímidos, mas agora já põem dúvidas e não se riem de nervoso miudinho, quando digo que vamos fazer trabalhos de grupo.
Comecei a falar sobre a democracia e ficaram completamente espantados. Não conheciam a Declaração dos Direitos do Homem, nem que tinham direito a terem um advogado se acusados de alguma coisa. Enquanto explicava estas coisas, começo a ouvir um burburinho e então um deles levanta-se (eles levantam-se sempre para falar) e diz: “Professora, nós não sabíamos isso, o que quer dizer com o direito à felicidade?” Todos concordam e ficam atentos à espera da resposta. Antes que tenha tempo de responder, “o mais velho” levanta-se e diz: “Doutora, nós somos baleias...as baleias choram, mas como vivem no mar, ninguém percebe que estão a chorar. Assim somos nós.”
Podem imaginar o tamanhinho com que ficou o meu coração. Parei a aula e disse que eles tinham razão, mas que até as baleias vêm à superfície para respirar e são tão grandes que é impossível não as ver. Disse que não é preciso armas nem revoluções para nos fazermos ouvir. Basta que chegando às suas aldeias eles passem a informação e essas pessoas façam o mesmo. Pouco a pouco chegará a qualquer lavra e qualquer picada. Não são só palavras bonitas, eu acredito nisto. Tenho o privilégio de estar a trabalhar num país em reconstrução. Angola só está em paz há 4 anos – nem chega -, há corrupção, há medo de investir, mas há vontade de reconstruir. De pôr esta guerra para trás das costas e recomeçar. Começam a reconstruir as estradas e os caminhos de ferro, já há 2 redes de telemóvel, a internet chegou ao Uíje ( a província mais pobre
do país), abriu mais uma faculdade, todas as semanas abre uma loja nova e malêmbê, malêmbê (devagar, devagar) a esperança renasce.

Também renasce para os meninos do lar de S. José. O padre que lá estava e não queria saber, foi substituído por um padre trabalhador e cheio de vontade de trabalhar connosco. O outro deixava-os dias sem comer, não se preocupava quando estavam doentes e não queria que os leigos estivessem lá muito metidos. Este padre novo vem da província, foi promovido a vigário-geral da diocese e só diz que não percebe como é que, com tantos padres doutorados, ele, filho de um camponês foi ali parar.
O bispo respondeu-lhe calmamente: “os doutoramentos que Jesus pede não são os dos homens”. Eu acho que o bispo não poderia ter escolhido melhor.
Estes meninos foram expulsos das suas terra e rejeitados pela família por serem feiticeiros. Bateram-lhes e muitos deles foram abusados, acusados de matar o pai ou a mãe. Eles próprios acreditam que são feiticeiros e podem fazer mal às pessoas de quem gostam. Muitos viveram na rua até serem acolhidos no lar e não sabem o que é ter mimos ou uma mochila para ir às aulas. Sempre que lá vamos é uma festa, alguém que se aproxima sem medo e luta por eles. Ainda fogem dos abraços, mas já não fogem dos olhares e dos sorrisos e pouco a pouco vão arriscando viver a sério, também vão sentindo que têm o direito à felicidade.
Continuamos a fazer o estudo do projecto a arrancar no nosso bairro.
Entretanto vamos observando as crianças de bata branca e cadeira de plástico que vão para as aulas debaixo da sombra de uma qualquer mangueira, ouvindo o chiar dos morcegos no sotão, a kizombada que sai dos carros parados na rua e saboreando as mangas dos nossos vizinhos e o malawo que nos trazem das aldeias. Tudo num cenário de terra vermelha, folhas verdes e céu cinzento carregado de trovoada.
É assim que de pula, mundêlê, branca e mana passei a Ana e que, pouco a pouco fui percebendo que a saudade não é querer estar aí, mas que vocês estejam aqui. E a oração, por enquanto é onde encontro Deus, vos encontro a vocês e é guardar tudo isto – mesmo o que não compreendo – no meu coração.

Deixo aqui o texto de um amigo meu que fez a formação dos leigos comigo e acho que explica melhor quem somos (quem sou) e porque estamos aqui. Estou cada vez mais burra, compreendam.

Bjs

Ana


Quanto mais Leigo mais burro...


Por várias vezes, durante os 10 dias de campo de trabalho, nos perguntaram o que é ser “Leigo”.
À partida, ser leigo é talvez não ser um especialista ou um técnico de uma área específica.
-“ Eu sou leigo nessa matéria.” Não conhecem a expressão? Perguntava eu.
Muito me falaram de ser ou não ser jesuíta.
- Ser leigo é não ser padre?
- Também.
- Ser leigo é ser missionário, um Homem comum que fala de Deus e que tenta sempre fazer como o Seu filho.
E assim foi...
Os dias passaram a um ritmo intenso de muito trabalho.
Aos poucos o testemunho de muitas acções propostas, aceites, planeadas, executadas e avaliadas, foram respondendo às tais perguntas. Talvez nos tenhamos sentido um pouco extraterrestres, seja lá o que isso fôr, visto que era frequente experimentar o olhar surpreso e admirado em situações como o avaliar a relação preço/qualidade de 10 fatias de fiambre ou pensar 7 vezes se apetece mesmo o tal cafezinho ou se é melhor deixar uns cêntimos para depois.
Outras vezes era porque alguém tinha que esperar por nós, que nos fechávamos no quarto, sempre à mesma hora, todos os dias para rezar em conjunto.
Penso que todos eles se sentiam intrigados com este modo de vida e de alguma forma provocados no seu interior. Ali qualquer coisa lhes mexia. Desde o primeiro minuto em terras da mais alta cidade do país que percebi que esta gente sabe e tem prazer em receber os outros, os que vêm de fora. É assim com quem sabe dar. Receber, dar, receber, dar. São ciclos que se criam nas boas relações. É preciso divulgar o que diariamente vimos construir naquela casa. Às vezes em situações tão delicadas que só mesmo pela teimosia de querer vencer algumas realidades com fortes abraços, só para ver quem tem mais força.
(...)
Estes dias li que, certa vez perguntaram à madre Teresa de Calcutá o que sentia quando entrava numa sala e toda a gente a aplaudia ao qual esta respondeu que sentia uma enorme alegria e que pensava sempre na cena em que Jesus chega a Jerusalém montado num burro e aclamado por todos com grande euforia. Ela, claro é o burro. Um burro feliz.
Não estranhem se alguma vez um Leigo vos disser: sinto-me cada vez mais burro.
Ser Leigo é isto, parece-me.

Tiago Galvão (Futura Comunidade de Lichinga)

Ana: obrigado por este relato, finalmente em discurso directo. Estamos todos a acompanhar esta aventura com grande emoção. Sempre que possas manda umas fotos para ilustrar as tuas histórias.

Saudades de todos nós.

Bão.