21.1.05

UM PACTO DE SANGUE
Em Julho de 1946, após três anos de ocupação japonesa, chegavam a Díli os membros da nova administração portuguesa em Timor-Leste. Entre eles, encontrava-se Ruy Cinatti, agrónomo, poeta, coleccionador de plantas e de aventuras. Uma vida cativante cujas marcas dificilmente serão apagadas pelo tempo.
TEXTO DE ROSÁRIO SÁ COUTINHO
National Geographic Ed. Portuguesa Agosto 2001
Em Dezembro de 1941, a longínqua colónia portuguesa de Timor-Leste vê-se arrastada para o palco da Segunda Guerra Mundial.
Temendo o avanço dos japoneses no Sudoeste asiático, tropas holandesas e australianas ocupam aquele território, indiferentes aos protestos do governo português, cuja neutralidade ficava assim posta em causa.
Portugal prepara-se para enviar militares portugueses para substituir as forças aliadas, mas os japoneses invadem a colónia em 1942.
A capitulação do Japão, em Agosto de 1945, devolve a Portugal a administração do território e, quando chega o convite para integrar os quadros do novo governo de Timor-Leste, Ruy Cinatti não pensa duas vezes.
Como se depreende das palavras do padre Peter Stilwell, cuja tese de doutoramento - "A Condição Humana em Ruy Cinatti" - se debruça sobre a vida e obra do poeta, o gosto pela aventura vinha-lhe de longe.
É pelos excertos dos diários, dos poemas e das cartas de Cinatti - recolhidos pelo padre Stilwell no seu trabalho - que seguimos o percurso deste homem invulgar, personalidade "fascinante" e "uma vida e obra de vulto no panorama da cultura portuguesa contemporânea".
Depois de uma infância marcada pela morte da mãe e pelo desentendimento com o pai, surge, em 1935, a oportunidade de realizar um dos seus grandes sonhos: um cruzeiro de férias às colónias, organizado pela revista "O Mundo Português".
A bordo do paquete "Moçambique", parte na sua primeira grande aventura.
De regresso, publica, ainda nos anos 30, alguns textos em jornais e escreve uma pequena obra-prima - o conto do "Ossobó", sobre este pássaro que anuncia as chuvas na ilha do Príncipe.
Em 1940, lança, com Tomas Kinz e José Blanc de Portugal. a primeira série dos "Cadernos de Poesia" e, pouco depois, por sua conta e risco, edita a revista "Aventura".
Quando menos esperava, no termo da Segunda Guerra Mundial, recebe um convite para seretário e chefe de gabinete do capitão Óscar Ruas, governador de Timor.
É um Timor devastado que Ruy Cinatti encontra em Julho de 1946.
Os japoneses tinham arrasado todos os edifícios e sabotado as infra-estruturas principais.
Iniciava-se o lento trabalho de reconstrução. Cinatti acompanha o Governador nas viagens de reconhecimento pela ilha. Porém, cedo se vê relegado a meras funções de gabinete.
Apesar da frustração, aproveita os tempos livres em expedições pela ilha, recolhendo espécimes da flora local e dados para a sua tese de licenciatura em Agronomia.
É durante esta primeira estada em Timor que o poeta identifica duas árvores até aí desconhecidas, a Podocarpus imbricata e o Eucalyptus cinattiensis.
As incursões pelo território trazem-lhe também um conhecimento directo e uma admiração profunda pelos timorenses.
Deixam de ser meros "figurantes" num cenário exótico e trava com eles grandes amizades.
É nesse período que Ruy Cinatti se apercebe das injustiças cometidas pelos novos quadros administrativos do território.
Sem papas na língua, não se coíbe de criticar severamente certas práticas a que hoje chamaríamos violações básicas dos direitos humanos, e que ferem a sua sensibilidade de homem e de cristão.
Dividido entre a vontade de se dedicar às suas pesquisas naquela "ilha perdida de mistérios densa" e as desgastantes tarefas burocráticas, sofre um esgotamento nervoso.
Aliviado do trabalho de secretária, encontramo-lo professor do liceu em Díli, incumbido de fazer um estudo sistemático das potencialidades económicas do território.
É convicção sua que o desenvolvimento equilibrado da colónia deve assentar em estudos científicos que norteiem a acção, mas, com o tempo, consolida-se também nele a perspectiva de que uma evolução sustentada requer a integração - e não a ruptura - desse desnvolvimento com a cultura milenar de Timor. A administração, porém, não pensa assim.
Preocupado com a saúde da avó, regressa a Lisboa em 1947, com os resultados dos trabalhos de campo.
Três anos depois, apresenta como tese de licenciatura no Instituto Superior de Agronomia um estudo exaustivo sobre as formações florestais em Timor e obtém a classificação de 19 valores.
Mas Lisboa aborrece-o e, em 1951, regressa a Timor como chefe dos serviços de agricultura do governo de Serpa Rosa. Lá, experimenta de novo a frustração do trabalho burocrático, mas assume-se agora como acérrimo defensor dos timorenses e do património natural e cultural daquela região.
Insurge-se contra a proibição do uso da lipa - o pano tradicional que os timorenses usavam à volta da cintura - e contra o abate de árvores na capital. " A minha vida aqui é uma luta constante contra toda a espécie de imbecilidade governamental", escreverá mais tarde a um amigo.
A partir de 1957, estuda antropologia cultural em Oxford e prepara um doutoramento sobre Timor, que visita ainda em mais três ocasiões: em 1958; de 1961 a 1962 - altura em que estabelece um pacto de sangue com membros de famílias nobres locais - e, por último, em 1966.
Em 1991, o mundo inteiro assistiu pela televisão, ao massacre de Díli.
O pequeno país do Pacífico ganhou finalmente o precioso tempo de antena que reclamava perante a comunidade internacional.
Desencadeou-se um processo irreversível que culminou com a independência do território, dominado pela Indonésia desde 1975.
O trabalho científico de Ruy Cinatti no território veio ganhar assim uma nova actualidade.
Apaixonado por Timor, que o prendeu "com cadeias de ferro", Cinatti deixou importantes trabalhos de etnologia, antropologia, botânica, agronomia e arquitectura, bem como sobre a arte e os costumes dos timorenses.
Publicou, entre outros livros, "Esboço Histórico do Sândalo no Timor Português" (1950), "Explorações Botânicas em Timor" (1950), "O Livro do Nómada Meu Amigo" (1958), "Uma Sequência Timorense" (1970), "Paisagens Timorenses com Vultos" (1974), "Manhã Imensa" (1984) e "Um Cancioneiro para Timor" (1996).
Os frutos da sua dedicação revelar-se-ão proficuos no futuro, constituindo um valioso contributo para a construção do novo país.
Cópia integral por Sebastião Pessanha - 21 de Janeiro de 2005